sexta-feira, 19 de agosto de 2011

áfrica minha

Nunca morri de amores pela África que os outros me pintavam, antipatizava profundamente com Angola e sempre jurei nunca lá por os pés. Reforcei esta ideia a primeira vez que entrei no Consolado Angolano, em Lisboa para pedir um visto ordinário de entrada no pais. Raio de pais burocrático, caro e corrupto, que gosta de complicar e faz (des)esperar o mundo.
Paciência é a virtude de Angola.
Três semanas depois aterrava em Luanda, em transito para uma estadia em Benguela.

África entranha em nós.
Ouvia as pessoas dizê-lo porque descreviam uma espécie de paraíso: o por do sol que enche o céu de laranja, as savanas, os animais, as praias de águas límpidas e quentes. “a paisagem africana entranha em nós” seria a descrição mais precisa. Mas a minha paisagem é urbana e nunca me fascinaram as descrições poéticas do território sub-sahariano.
A África que conheci não tem savanas. Os animais que mais vi foram porcos – de um tamanho colossal e que passeiam à solta bairro fora. Dei comigo a filmá-los e questionava-me sempre a que casa recolheriam ao anoitecer.





Vim no tempo do cacimbo e pouco tempo passei nas praias. As que vi eram bonitas mas, com excepção da restinga, no Lobito, longe de paradisíacas. Têm miúdos que saem da escola e ali fazem uma paragem para dar um mergulho no mar e brincar na areia.





“Oncócua, como tantas outras vilas de Angola, foi desenhada com largas avenidas, para ser no futuro uma grande cidade. O futuro, todavia, atrasou-se. Talvez nunca chegue.“
A Mulheres do meu pai. José Eduardo Agualusa [uma das minhas leituras de férias]

Não sei se o futuro se atrasou a chegar a Benguela. Diria antes que há que ter paciência. Sei também que o dinheiro fica em Luanda e mesmo à segunda cidade desta Angola o que chega já lavou demasiadas mãos. Chaga diluído e para alguns.
Benguela deve ter sido uma cidade imponente. As largas ruas de grandes passeios e moradias de um modernismo de linhas rectas, ortogonais e diagonais. ainda impressionam. Até os gradeamentos são de diferentes motivos geométricos, padrões dos anos sessenta. Mas as casas e os prédios baixos estão velhos, desgastados pelo uso, pela falta de maquilhagem e pelo pó, que cobre a cidade de uma velatura amarela acinzentada. As estradas, mesmo as alcatroadas no centro da cidade têm enormes buracos. Ás vezes cheira bem, a pão acabado de fazer. Outras cheira a urina e ao podre do lixo. Impressiona olhar a cidade e pensá-la como cenário possível do paraíso que contam os portugueses que viveram à grande nas colónias. Possível mas inexistente, como as cidades fantasmas dos westerns americanos.

Depois, para lá da cidade há os bairros. Há Caponte, a Lixeira, Damba Maria, os Navegantes, a Graça, ...
A Graça fica no morro, à direita, quem vai na estrada de Benguela para o Lobito. Cá de baixo, da estrada, vê-se a igreja a espreitar na encosta. Os miúdos descem o morro sentados no resto de um caixote de lixo. O Hiace sobe o morro a custo, carregado de mamãs, alguidares com compras e jovens. (Não sei como subirá no tempo das chuvas). Leva também as únicas pulas que estão em Benguela sem carro e que se deslocam no aperto dos táxis colectivos.






As mulheres em Benguela ou têm uma barriga grávida à frente ou um bebé às costas. Como se o corpo só existisse com uma destas duas bossas. A vida não pára, nem se torna mais fácil em nenhuma das duas situações. As grávidas não deixam de carregar, num equilíbrio incrível, pesados alguidares à cabeça, as mães não deixam de trabalhar e para todo o lado levam os bebes agarrados a elas.
É-se mulher muito cedo, em África. É-se mulher demasiado cedo.









África entranhou em mim.
Levo o pó da cidade e do bairro da Graça no corpo.
Levo a casa da Esperança -  casa de braços abertos - no coração. Os almoços e mimos da manaLuísa (a salada de frutas com maracujá), os jantares onde se juntavam várias ONGs à mesa (e se discutiam conquistas e dificuldades de Angola, noticias de Portugal ou se divagava culináriamente), as gatas que pediam comida depois do jantar, “Uma família Moderna” projectada no lençol.
Levo o sorriso agradecido dos monitores de alfabetização depois de lhes dar formação e de lhes repetir sem fim que o que faziam era tão digno, tão válido que seria eu, em nome do mundo, que lhes deveria agradecer. “Alfabetizar é dar para sempre”

E levo os bons dias trocados com desconhecidos na rua. Os percursos de mota pela cidade. As viagens apertadas no hiace, entre mamãs simples e jovens vaidosos. O kuduro e as kizombas como música de fundo. O Lázaro a tocar viola, a um canto, lá em casa. Caponte, o lugar onde tudo se vende. A noite a dançar na TiJoana. O Wilson a falar de dança. As barulhentas festas de crianças, no quintal da cidade ou no bairro. O matar da fome com bananas ou milho assado, comprados na rua. O tempo do teatro. As sessões de cinema em casa do padre J. O muro da Graça a ganhar cor. Os miúdos a brincarem e a chamar-me mulata. Cucas em frente à praia Morena.

Levo comigo uma África pausada, sem kumbu nem maca.

Afinali há uma Angola que já é minha.
Obrigada T, P e S.



hiace (lê-se íásse) = táxi colectivo de trajecto pré definido mas com paragens mais ou menos livres, onde viajam o dobro dos passageiros da lotação do Toyota Hiace. Tem sempre música de fundo altíssima e as viagens são uma animação.
kumbu =dinheiro
maca = problema
pausa = estilo
pula = branca

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