sábado, 28 de agosto de 2010

acerca dos rostos de Timor, do retrato e do acto de fotografar

Hoje, no Huis Marseille Foundation for Photography, li algo interessante sobre retratos. Sobre essa arte que ainda se mede pela verosimilhança do objecto artístico ao retratado, sobre a relação que se estabelece entre que posa e quem retrata. Sobre as implicações da pose.
Por momentos fui transportada novamente para Venilale, para o interior profundo de Timor.
Durante as manhãs, uma das actividades que tínhamos agendada eram visitas domiciliarias. Foi das coisas que mais me custou, entrar na casa, na privacidade, no mundo daquelas pessoas. Entrar com o meu olhar europeu e fazer um enorme esforço para que esse olhar não denunciasse a minha revolta interior ao ver as condições de subsistência infra-humanas em que vivem aqueles que nos abriam as portas das suas próprias casas. A comunicação não era fácil. Se para mim já é difícil ler a expressão de um alemão, é quase impossivel decifrar a de um asiático e a de um Timorense - asiático fechado por séculos de ocupação estrangeira - é tarefa inglória. A tradutora nem sempre ajudava. No final da visita, depois de alguns minutos de conversa perguntávamos se queriam tirar connosco, uma fotografia, um retrato. E para meu grande espanto (que de inicio achei que fotografar o que os meus olhos viam seria uma intromissão ainda maior que a minha própria presença), os olhos daquela gente brilhavam, a tensão nas têmporas suavizava e abanavam a cabeça em sinal afirmativo. Então assisti a algo de outro século. As senhoras endireitava-se lentamente na cadeira, passavam as mãos pelo cabelo e pela camisa, a confirmar que tudo estava no lugar onde devia estar para ser registado. Respiravam, fixavam o olhar na câmara e paravam - suspendiam-se por uns momentos que para mim, habituada ao instantâneo das máquinas digitais, me pareciam séculos. E o milagre acontecia quando lhes mostrávamos a sua própria imagem nos pequenos ecrãs. A seriedade dos setenta e muitos anos enrugados dava origem a uns sorrisos de gozo fantásticos. Toda a cara era ligeira e de expressão aberta. E era exactamente neste momento que me apetecia fotografá-los.
E pergunto-me: qual seria o retrato realista daquela gente: o que era cuidadosamente preparado por eles e por nós, num ritual que lembra o inicia da própria fotografia ou o que capta o instante de surpresa perante a imagem própria. A construção ou o improviso. O que queremos perpetuar de nós ou o que transparece quando menos esperamos.
E reconheço que fotografá-los, de uma forma amadora e sem grandes pretensões, mudou realmente a relação que estabeleci com eles. Não a fotografia. O acto de fotografar.

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