sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Ainda sobre a dignidade

Eram dez e meia da noite de uma terça feira vulgar, 10 ou 12º, bastante humidade e o céu escuro. Saímos do metro, numa estação terminal para apanhar o comboio naquela que seria, a estação correspondente aos Restauradores: um edificio imponente, estruturas de metal com anos de história e vários combóios, com direcção aos limites da grande Buenos Aires. “Constituición”, durante o dia, é uma estação que fervilha de gente: a entrar e sair da cidade, a correr para o emprego, a tomar café nos cafés improvisados na gare. Há ritmo e vida naquele lugar de ninguém.
Eram dez e meia da noite, de uma terça feira de trabalho e vi, naquela estação, um mundo que não conhecia. Crianças sujas e esfarrapadas acotovelavam-se para tentar a última esmola do dia. As que já tinham desistido, procuravam um canto, menos frio para dormir, entre caixotes e cobertores sem cor. Outras fumavam e riam alto, mostrando que a vida lhes roubara a infancia que o corpo ainda indicava. Mulheres amamentavam miúdos demasiado grandes para sobreviver de leite materno. Homens sem idade juntavam papel e cartão. Recolhiam do chão e amontoavam tudo o que pudessem vender ao kilo por uns míseros pesos. Famílias inteiras arrastavam-se cinzentas e sem rumo pela monumental estação. Claro que eu já vi muitos pedintes, muitos mendigos e muitos sem-abrigo. Mas aquele terminal de combóios, de noite, transforma-se numa autêntica cidade-fantasma. Onde as pessoas já não têm expressões, número ou género. Os corpos são imensos, amontoados, arrastados….
Comprei o meu bilhete e durante muito tempo fui incapaz de pronunciar uma palavra.
Pouco passava das dez e meia da noite e, ao entrar no comboio, tive a sensação que deixava para trás outro mundo.
Um mundo onde se passou o limite da pobreza.
O mundo da miséria.

3 comentários:

MPR disse...

E um novo mundo deve abrir-se em frente aos nossos olhos que nos leva a relativizar os nossos proprios problemas, a nossa própria vida...

Mary Mary disse...

Só passando por certas coisas na vida é que tomamos conta da nossa impotência! De querer mudar o mundo mas não ter meios. Da indiferença que o mundo toma com essas pessoas! É revoltante e muito!
Mas cabe a nós mudar isso. Cabe a nós fazermos um mundo melhor, e pode-se começar por um simples mendigo que vive na nossa rua! Nunca será o suficiente enquanto vivermos numa sociedade que apenas pensa em dinheiro mas será um começo se cada um olhar para a pessoa que está ao lado e pensar o que poderia fazer para ajudá-la naquele dia...

air disse...

devo confessar que, quando consegui acordar do choque, mais do que impotência, o que senti foi uma revolta imensa contra um sistema politico e social tão corrupto e degradado que olha com normalidade para a miséria. E cruza os braços.