domingo, 31 de outubro de 2004

memórias

A propósito de memórias e da certeza de que existem porque o passado tem o seu espaço na nossa vida, apeteceu-me ir buscar um texto antigo


Os homens na minha vida
para todos os que partilharam momentos que não lhes contei

Lembro-me da paisagem branca e desconhecida atravessar rápida e continuamente as janelas do carro. Lembro-me do cheiro não familiar e do frio. E do desconforto tenso que se podia ouvir nas palavras que não dizíamos. E pouco a pouco o céu foi-se desfazendo em pedaços de algodão. Lembro-me das correntes leves e desorganizadas, de as olhar e me esforçar inutilmente por vestir com elas os pneus do carro. Sei que fui deixando de sentir as mãos até já não me lembrar do frio. Lembro-me que o calor foi dolorosamente ressuscitando as minhas mãos que descongelavam golpeadas e a sangrar. E nem a aguda dor física que sentia conseguia superar a impotência de não saber vencer o silêncio.
E ainda hoje me dói ter as mãos geladas.

Lembro-me do cheiro a terra molhada, aquele cheiro a tempo parado que desabou com a trovoada nos inícios de Setembro. Lembro-me de ir sentindo a roupa a colar molhada ao corpo e do barulho que as sandálias preta faziam a chapinhar apressadas nas poças do bairro de Grácia. E lembro-me de uma ligeira aflição interior que teimava em insistir: será que o céu zangado desta forma me deixa chegar a tempo ao aeroporto?
E a trovoada continua a cheirar-me a Barcelona.

Lembro-me que a relva continuava verde, como que a querer contrariar o castanho-dourado do Alentejo. Lembro-me da azáfama nada alentejana daquele início de tarde. De atravessar em passadas largas o pátio relvado vezes sem conta reunindo tralha e ideias. Ao fundo o ruído alegre e contagiante dos outros em tempo livre. Lembro-me da caneca de café que me foi entregue. Lembro-me do calor mais quente que o da tarde, concentrado entre as minhas mãos, do cheiro tranquilo e do amargo na boca que me soube a muito. E de repente, toda a agitação exterior se condensou num breve momento de paz.
E ainda hoje café é, para mim, sinónimo de serenidade.

Lembro-me do calor seco que parecia não querer deixar correr o cheiro a pinheiro. Lembro-me que tinha os pés doridos, ensanguentados e as botas baças do pó do caminho. Esbocei um sorriso por dentro ao avistar mais uma descida, mais uns breves segundos que podiam ser caminhados à velocidade a que o coração nos deixa sonhar. É que a brisa se sente mais forte quando se desce uma colina a correr. Sem segurança. E lembro-me da alegria agradecida de me sentir novamente em caminho.
E continuo em peregrinação pela vida.

Lembro-me do fresco da madrugada e da penumbra em que o dia-que-ainda-não-era-dia se apresentava. O silêncio era imponente e não apetecia quebrá-lo. Lembro-me de saber estar no sítio certo embora essa fosse a única certeza que tinha. E partimos em busca de um local mais longe e mais alto, mais perto do céu. Lembro-me do interminável tempo de espera, dos campos que se iluminavam com o nascer do dia e do sol que teimou e não apareceu. Lembro-me da estranheza que é a espera de algo que não pareceu vir com a certeza de lá estar. E lembro-me do céu povoado de andorinhas, paradas a anunciar que um novo dia já tinha começado.
E passei a confiar que o sol, como tantas outras coisas na vida, está mesmo quando não o vemos.


Qual é a importância de cada detalhe no decurso da nossa vida?
Quem disse que uma breve sensação é menos importante que um grande feito?
E o que é que a nossa memória retém?

[Outono de 2002]

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